A América Latina e o “Hemisfério Americano”

Por Marcos Bau Brandão

Devido ao passado histórico comum dos territórios colonizados pela América espanhola, Simón Bolívar* divulgou em 1815 a Carta da Jamaica que afirmava sua vontade de formar uma confederação hispano-americana com regiões que foram dominadas pelo Império Espanhol, por professarem a religião católica, língua espanhola e também pela proximidade geográfica. Ficava de fora do projeto bolivariano os EUA pelo ideário expansionista que seria externado pela “Doutrina Monroe” pautado na “América para os Americanos” (1823), o Brasil e o Haiti que ainda não tinham proclamado a independência.

*Militar e líder político venezuelano que lançou bases democráticas lutando pela independência dos territórios da América Espanhola do Império Espanhol. Entre 1919 e 1930 foi presidente da Grã-Colombia (hoje onde estão os países da Colômbia, Equador, Venezuela e Panamá).

Só em 1824, Bolívar convoca líderes das principais capitais do continente para o projeto de interligação das Américas. Em 1826 aconteceu a reunião do Panamá que fracassou pelo esvaziamento** da falta de tempo em avisar a todas as nações e pelos EUA não concordarem com envio de tropas para lutar contra os espanhóis pela independência de Porto Rico e Cuba. Outro problema para os EUA eram os britânicos que ainda lutavam em território ianque.

**Participaram Grã-Colômbia, México, Peru e Federação Centro-Americana (El Salvador, Nicarágua, Honduras e Costa Rica).

Sobre o início do entendimento do “hemisfério americano”, o primeiro secretário do Tesouro norteameriano Alexander Hamilton lança projeto afirmando que os EUA tinham que liderar a nova ordem de todo o continente americano.

Mapeando a América Hispânica, esta envolvia o Vice-reino da Nova Espanha, Vice-Reino da Nova Granada e Vice-reino do Rio da Prata (veja no mapa que segue) e o próprio Bolívar sabia que devido a essa vastidão territorial era muito difícil uma unificação em um só Estado-nacional. Esse foi um dos principais aspectos de enfraquecimento do projeto bolivariano e sua dissolução contribuiu para o aparecimento de uma identidade latino-americana pela via da influência francesa (através de Napoleão III) que tinha o interesse de estabelecer uma fronteira entre a América Anglo-Saxônica dos EUA e Canadá e uma América Latina dos demais países voltados para o Sul.

Colônias espanholas e portuguesas. Bolívar pretendia a unificação dos Estados em amarelo. Fonte: TERRA, Lygia; ARAUJO, Regina; GUIMARÃES, Raul Borges. Conexões: estudos de geografia do Brasil. São Paulo: Moderna, 2009, p. 344.

Napoleão III procurou projetar sua influência sobre o Novo Mundo e interveio entre 1862 e 1867 em uma guerra no México aproveitando o enfraquecimento norteamericano com a Guerra de Secessão (1861-1865 – Estados do Sul agrário contra os do Norte industrializado). A intervenção no México para conter a hegemonia norteamericana depôs o presidente Benito Juárez e chegou a coroar o imperador austríaco Maximiliano de Habsburgo em apoio à oposição do governo sob a acusação que tal governo funcionava como uma extensão de obediência a Washington.

Este artigo atende aos fins de leitura e pesquisa e pertence ao blog GeoBau (http://marcosbau.com). Proibida a reprodução pelo Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610/98 de Direitos Autorais. PLÁGIO É CRIME. DENUNCIE. 

A invasão para “ajudar” (lendo as aspas = exercer influência sobre) os países da América arruinou as finanças francesas e obrigou Bonaparte a retirar suas tropas do território mexicano. Maximiliano em 1867 foi capturado e morto pelo liberais mexicanos liderados pelo ex-presidente Benito Juárez e apoiados pelos Estados Unidos. A França se enfraqueceu mais ainda quando perdeu a guerra franco-prussiana em 1871, e com isso encerrou sua tentativa de domínio na América.

O “Hemisfério Americano”

Entre 1889 e 1954 aconteceram as Conferências Pan-americanas dentro dos princípios do pan-americanismo e desde o século XIX a consolidação desse projeto vinculado aos EUA, (que se pautavam na Doutrina Monroe) teve a contribuição da política externa brasileira, pois o chanceler Barão do Rio Branco (1902-1912) era um pan-americanista que defendia uma aproximação mais estreita com as repúblicas hispano-americanas, assim como uma parceria privilegiada entre Brasil e os Estados Unidos.

No pós II Guerra, em 1948, foi criado um organismo permanente na Conferência de Bogotá, a Organização dos Estados Americanos – OEA que se assentava na cooperação interamericana certificando a liderança dos EUA em uma época de início da Doutrina Truman que tinha na bipolaridade o principal aspecto de conter o socialismo soviético. Isso fez com que houvesse uma maior proximidade dos EUA com os países da América Latina no espectro do “Hemisfério Americano” sob um motivo principal: a estratégia de contenção do socialismo soviético.

A Conferência do Rio de Janeiro em 1952 assinou o Tratado Interamericano de Ajuda Recíproca – TIAR que também nasceu nesse contexto de bloquear o expansionismo soviético e subordinou as forças armadas dos Estados americanos à geopolítica de Washington. Coisa que no final da Guerra Fria a América do Sul certifica que os interesses dos EUA sempre seguiu seu “destino manifesto”, isto é, uma influência cada vez mais interplanetária puramente tecida para obter vantagens geopolíticas e comerciais mantendo a América Latina sob a tutela dos EUA. Essa certificação veio quando os EUA, em 1982, na guerra das Malvinas apoiaram a Inglaterra (sua aliada na OTAN) quando pelo TIAR deveriam apoiar a Argentina.

No curso cronológico dos acontecimentos geopolíticos, com a Revolução Cubana em 1959 havia uma grande preocupação com a invasão do sistema soviético em um sistema interamericano comandado pela polaridade capitalista liderada pelos EUA. Em abril de 1961 o presidente Kennedy através da CIA fracassou ao armar exilados cubanos para tentar tomar o poder de Fidel Castro na invasão da Baía dos Porcos. Em 1962 foi a vez da crise dos mísseis que gerou uma grande tensão geopolítica resolvida pela promessa norteamericana de não invadir a ilha, mas Cuba depois desse episódio foi expulsa da OEA (essa resolução de 1962 foi suspensa em 2009 e a partir daí Cuba pode voltar a participar da OEA – veja artigo sobre o assunto) .

A esfera de influência norteamericana não parou por aí. Nas décadas de 1960 e 1970, a estratégia de contenção deu lugar à prática de financiamentos de ditaduras militares na América do Sul inclusa na chamada doutrina de “segurança nacional” que derrubou governos civis no Brasil (1964), na Bolívia (1971), no Chile (1973), na Argentina (1976) e no Uruguai (1976).

A estratégia de unificação norteamericana fundamentou-se no campo de integração comercial. Assim surgirá o projeto da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) como a diretriz da “nova” geopolítica e geoeconomia de Washington que será abordada adiante.

Os Blocos Econômicos da América Latina

Em uma atmosfera de descolonização africana e asiática, assim como da Conferência Afro-Asiática de Bandung (1955) e do movimento dos Países Não- Alinhados em Belgrado (1960), o Terceiro Mundo exigia uma maior atenção para diminuir o abismo econômico entre os países do norte comparado com os do sul (para entender melhor leia Terceiro Mundo e Terceiro Mundismo).

Nesse campo de integração comercial, o Tratado de Montevidéu faz surgir a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc) em 1960 com os países membros Argentina, Brasil, Chile, México, Peru, Paraguai e Uruguai. O livre comércio estabeleceria um mercado comum. A Alalc tinha como a principal integração econômica entre Brasil, México e Argentina (os “Três Grandes” da América Latina) devido ao crescimento industrial que se apresentava para esses países, mas haviam muitas diferenças entre esses “Três Grandes” se comparadas com os demais países do bloco regional e isso fez com que a ideia fosse abandonada mesmo após a abertura, para entrada em 1970, de Bolívia, Colômbia, Equador e Venezuela.

No mesmo propósito da Alalc nasceu o Mercado Comum Centro-Americano – MCCA também em 1960 para integrar as economias da Costa Rica, Guatemala, Honduras, Nicarágua e El Salvador. Com o enfraquecimento da Alalc, em 1969 foi a vez do Pacto Andino surgir e anexar a Bolívia, Peru, Equador e Colômbia. A partir de 1996 o Pacto Andino passou a se chamar Comunidade Andina das Nações – CAN.

O Tratado de Montevidéu de 1980 substituiu e deu continuidade a Alalc com a Associação Latino-Americana de Integração – ALADI e se baseou na noção de autonomia de decisões dos Estados-membros focando na prioridade do desenvolvimento dos mercados ligados ao comércio latino-americano e condizentes com as novas perspectivas do cenário internacional.

O crescimento industrial dos emergentes e a integração em blocos comerciais associado à distensão das relações comerciais com os países desenvolvidos da Europa contribuíram para déficits na balança comercial norteamericana desde meados da década de 1970. Mais de 60% do déficit dos EUA resulta do comércio com seus principais parceiros (Canadá, México, Japão, China e União Europeia). Esses saldos negativos há três décadas são cobertos pelas remessas de lucros que as filiais das multinacionais remetem para o espaço norteamericano junto aos investimentos externos.

Dessa perda de mercado surge no ideário norteamericano o projeto da Área de Livre Comércio das Américas – ALCA para consolidar a influência geopolítica no “Hemisfério Americano” de domínio comercial interplanetário através da exportação de bens da tecnologia de ponta para o cone Sul dominado pelo comércio principalmente com a União Europeia.

Mapa dos blocos de integração da América Latina. Fonte: Blog Conectegeo. Clique na imagem para uma melhor visualização.

O presidente Bush anuncia em 1990 meta de chegar a uma zona de livre comércio entre as Américas do Norte, Central e do Sul e ao mesmo tempo anuncia o Nafta (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, com EUA e Canadá) que vai ter a inclusão do México em 1992. Em 1994 foi discutida a zona livre de comércio de todos os países da América, ALCA (menos Cuba) na I Cúpula das Américas (realizada em Miami).

Com a inclusão do México no Nafta, quando parecia que o projeto da ALCA estava começando a dar certo veio a crise cambial mexicana em 1994, onde uma eminência de revolução pelos Chiapas (nativos do Sul do México) causou o chamado ‘efeito tequila’ quando houve a fuga de mais de US$ 8 bilhões dos bancos mexicanos e os EUA tiveram que injetar US$ 40 bilhões nessa economia. A crise mexicana afastou os EUA do Chile em um acordo de cooperação bilateral que estava prestes a ser assinado.

Países do Nafta. Fonte:  SENE, Eustáquio; MOREIRA, João Carlos. Geografia geral e do Brasil. São Paulo: Scipione, 2010, p. 430.

A aproximação dos EUA com a América através do Nafta tornou o México e o Canadá mais dependentes, pois o comércio entre os membros aumentou – reduzindo fluxos principalmente da União Europeia -, porém mais de 80% do PIB intrabloco é movimentado pelos norteamericanos. A aproximação dos EUA com o Chile pela APEC*** segue a mesma lógica de aumento do mercado Americano sob sua tutela como tentativa de recuperar os saldos da balança comercial que, como escrito anteriormente, desde meados da década de 1970 fecham em déficit.

***Cooperação da Ásia e doPacífico – não é um bloco e sim um fórum de discussão fundado em 1989 que pode virar um bloco econômico. Composto por 20 países da bacia do Pacífico. No “hemisfério americano” participam os EUA e o Chile.

Um grande golpe nos planos dos EUA foi o andamento da parceria na década de 1980 entre Brasil e Argentina que resulta na Ata de Iguaçu em 1985, um embrião do Mercosul que, por sua vez, seria assinado através do Tratado de Assunção em 1991. Evoluiu para união aduaneira em 1995 com a fixação da Tarifa Externa Comum (TEC).

O Mercosul passou a ser realidade econômica e prioridade diplomática dos membros (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai – Venezuela pediu adesão em 2006 e em 2011 faltando apenas a liberação do Paraguai) enfraquecendo cada vez mais o projeto norteamericano da ALCA que além da estratégia geopolítica de ‘tutelar’ o “hemisfério americano” tinha no Brasil a visualização da vastidão desse mercado para instalação de mais transnacionais.

Eventos como a desvalorização cambial brasileira em 1999 e a crise argentina entre 2001 e 2002 fizeram com que a capacidade de consumo reduzisse afetando na queda das trocas comerciais Brasil-Argentina. Não obstante, a Argentina adotou medidas protecionistas para barrar a entrada de produtos brasileiros em seu mercado. Vinte anos depois de formado, o Mercosul enfrenta sérios problemas que o ameaçam até de extinção. São os principais problemas atuais: parceria Brasil-China, disputas ambientais Uruguai-Argentina pela implantação de fábrica de celulose no Uruguai, adesão da Venezuela que tem outro projeto geopolítico, Brasil com 70% do mercado intrabloco, etc.

Com as divergências no interior do Mercosul, em 2000 a Conferência de Brasília reuniu os chefes de Estado do Cone Sul e lançou a Comunidade Sul-Americana das Nações (CASA). Depois da III Reunião de Presidentes da América do Sul em 2004, a CASA virou Comunidade Sul-Americana de Nações, e finalmente em 2007, União dos Países do Sul-Americanos (UNASUL) envolvendo os 12 países do Cone Sul, cujo objetivo é criar um espaço integrado no âmbito político, social, ambiental e infraestrutural que integre o Mercosul, Comunidade Andina, Chile, Guiana e Suriname (veja mapa que segue).

Blocos CAN, Mercosul e UNASUL. Fonte: SENE, Eustáquio; MOREIRA, João Carlos. Geografia geral e do Brasil. São Paulo: Scipione, 2010, p. 434.

Nesse contexto, o projeto da ALCA foi abandonado em 2005 por divergência entre EUA, Brasil e Argentina. Para o Brasil, o projeto geopolítico que mais faz sentido é o que interliga a América do Sul. Enquanto a ALCA está adormecida a estratégia dos EUA é de estabelecer tratados de livre comércio bilaterais (TLCs além do Nafta, com Chile, Peru, Equador e alguns países da América Central).

Em 2004, um acordo de integração política anti-EUA entre Venezuela e Cuba formou a Alternativa Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA – hoje chamada de Aliança Bolivariana para as Américas). Atualmente a liderança político-ideológica é da Venezuela (pelas vantagens na venda de petróleo aos signatários) e conta com os membros: Bolívia,  Nicarágua, Dominica, Equador, Antigua e Barbuda e São Vicente e Granadinas. A ideia de Hugo Chávez é integrar toda a América Latina sob o comando da Venezuela.

Nota-se que apesar do afastamento da ALCA, principal projeto dos EUA para as Américas,  o Brasil tenta fortalecer o projeto da UNASUL sob a sua liderança tentando aproximar o Cone Sul, mas divergências entre os países do Mercosul (Argentina não aceita liderança brasileira) associadas ao também divergente projeto venezuelano da ALBA fazem com que o alinhamento teórico não corresponda ao que acontece na prática.

7 Respostas to “A América Latina e o “Hemisfério Americano””

  1. mateus ignácio Says:

    professor,parabéns pelo seu blog,está muito bom,vai me ajudar muito nos meus estudos! brigado 🙂

  2. é mesmo muito bom mesmo pra ajudar nos estudos 🙂

    Mas tenho 2 perguntinhas:

    1 – UNASUL é considerado um novo bloco econômico regional?

    2 – Porque os países do Mercosul consideram a entrada da Venezuela no bloco, sabendo do seu ideal anti-americano?

    • Fico feliz em poder ajudar. Vamos às respostas:

      1 – UNASUL não é um bloco econômico e sim um organismo internacional que tem como objetivo objetivo construir, de maneira participativa e consensual, um espaço de articulação no âmbito cultural, social, econômico e político entre seus povos, isto é, promover a integração entre os países membros e pode evoluir para uma zona de livre comércio.
      Informação do Itamaraty: http://www.itamaraty.gov.br/temas/america-do-sul-e-integracao-regional/unasul

      2 – Conforme os defensores por uma questão econômica e de integração do Cone Sul (lembrando que dos membros ainda falta o Paraguai chancelar essa entrada). A fala do Senador Pedro Simon (PMDB-RS) na época bem define isso: “Apesar de tudo, eu sou favorável à integração na América do Sul. Se fosse pelo presidente da Venezuela, eu jamais falaria em integrar a Venezuela ao Mercosul. Mas o presidente da Venezuela passa, essas questões ficam”. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u666908.shtml

  3. Gilbert Di Angellis Says:

    Parabéns, Bau. O blog está excelente! As suas publicações a respeito do Japão, China e América Latina foram esclarecedoras. Você já pensou em escrever um livro de Geografia? Um abraço.

  4. por favor gostaria de saber quais países da américa latina são socialistas, quais foram e em que data aderiram ao socialismo …e quais foram;….obrigada

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